Carregadores de bateria de celular podem dar choque?

Noutro dia um amigo comentou comigo que andava rolando um papo por aí de que alguns carregadores (o certo seria recarregadores) de bateria de celular estavam dando choque e perguntava-me se realmente seria possível isso acontecer.

Num primeiro momento respondi-lhe que impossível não seria, mas gostaria de analisar mais o assunto à luz da técnica e não do achismo, ou do “dizem por aí” para que, um possível fake não virasse fato.

O tempo passou outras demandas surgiram na minha vida e o assunto ficou em stand by.

De repente ele volta à baila por uma via transversal.

Recentemente adquiri um gerador chinês de formas onda para examinar e ver se valeria a pena sugerir aos alunos do Clube Aprenda Eletrônica como alternativa mais barata para quem está com o orçamento apertado (quem não está?).

Trata-se do Feel Tech que será objeto de um próximo post.

Antes de comprar o tal gerador fui dar uma olhada da Internet para ver o que as más e boas línguas falavam dele.

Vi muita gente falando para ter cuidado porque ele apresenta uma tensão AC relativamente elevada na parte externa dos bornes BNC o que, obviamente, não deveria acontecer e não é recomendável.

Haviam algumas explicações sobre porque isso acontecia bem como sugestões para resolver.

Basicamente, isso acontece porque ele usa uma fonte chaveada não aterrada, mas isto como eu disse, fica para outro momento.

O ideal nestes tipos de equipamentos, a meu ver, ainda é utilizar a boa e velha fonte linear com o transformador pesadão na entrada como o meu ICEL GV-2002.

Como o “prejuízo” era pequeno resolvi dar uma de São Tomé, encomendar um Feel Tech, e ver para crer.

Neste instante lembrei-me da questão dos tais recarregadores de celular que estavam dando choque.

Novamente voltei para Internet a ver o que a galera andava a falar sobre o assunto.

Numa busca rápida vi alguns “técnicos” alegando que seria impossível um recarregador de celular dar choque uma vez a tensão fornecida era muito baixa.

Fig.1 – Carregador LG AC-100

Sinto informar a quem afirma isto que precisa urgentemente estudar um pouquinho e rever seus conceitos. Que tal dar uma olhadinha na etiqueta que aparece neste “AC adaptor” LG AC-100.

Para início de conversa não custa lembrar (ou informar para quem não sabe) que o choque não é produzido pela tensão e sim pela corrente e a tabela abaixo mostra os efeitos fisiológicos que pode produzir no ser humano de acordo com a faixa de corrente.

Fig.2 – Tabela de correntes e choque elétrico

Então, fica combinado assim “galera do Youtube” o correto é dizer: pouco provável, nos modelos de recarregadores classe II, mas não impossível.

E aqui podemos incluir também as fontes de notebooks, entre outras, que também funcionam como recarregadores das baterias.

Neste momento conclui que valeria a pena uma abordagem mais minuciosa sobre o assunto, pois esclarecia dúvidas de muita gente.

O que tem dentro de um recarregador

Todo recarregador atualmente é composto de uma fonte chaveada cujo primário não é isolado da rede elétrica, assim como todos este tipo de fontes.

Tomemos o esquema simplificado da fig.3 como referência para tornar as explicações mais didáticas.

Fig.3 – Esquema simplificado de uma fonte chaveada

Em princípio, pode-se pensar que o lado direito ao qual o usuário poderá ter contato está com o “terra” (COLD)  aparentemente isolado do “terra” (HOT) do lado esquerdo aonde estará conectado o “vivo” (line) ou neutro da rede dependendo de como recarregador for ligado na “tomada da parede” em países, como o Brasil, por exemplo, onde não existe preocupação com segurança.

Reparou que eu escrevi, aparentemente isolado, aqui acima?

Com relação ao isolamento do acoplador óptico podemos até colocar a mão no fogo, ou melhor, no “terra” COLD, mas quanto a chopper nem tanto.

Outra questão importante é a qualidade da placa de circuito impresso, bem como a disposição dos componentes, tópicos que poderão acarretar fuga de corrente de um lado para outro por conta de capacitâncias distribuídas.

Não custa lembra que em fontes chaveadas não estamos trabalhando com os 50 ou 60Hz da frequência da rede elétrica, exceto até o primeiro capacitor de filtro.

Supondo que todos quesitos acima passaram no teste, vamos colocar mais um para complicar a nossa vida: – o capacitor Y.

Veja a fig.4.

Fig.4 – Esquema completo de um recarregador

É comum encontrarmos nas fontes chaveadas um capacitor que interliga os “terras” HOT e COLD, e que é designado por capacitor Y.

(CLIQUE AQUI PARA SABER MAIS SOBRE ELE).

Sua finalidade é eliminar ou pelo menos diminuir o ruido em modo comum, sempre presente nas fontes chaveada, que se propaga pela rede elétrica e pode afetar o comportamento de outros aparelhos.

Entretanto, ele acaba acoplando os dois “terras” o que pode deixar o usuário ter contato com o vivo da rede pelos diodos da ponte retificadora.

E aí foi-se por água abaixo a “teoria” de que é impossível levar choque em recarregadores de celular, por isso prefiro dizer “pouco provável” e você já mostrar porque.

O padrão atual de conector de recarga

Já faz algum tempo que o conector que liga o recarregador ao celular foi padronizado e todos fabricantes passaram a utilizar o padrão micro USB, cuja parte metálica fica isolada.

Até aí eu concordo que para estes tipos de carregadores é praticamente impossível levar choque ao tocar na parte metálica do conector micro USB, não porque a tensão é baixa, mas sim porque a parte metálica do conector não deve estar ligada ao negativo (ou “terra”) de saída da fonte e, portanto, não haverá um caminho para uma possível circulação de corrente no corpo do usuário.

Entretanto, além do micro USB temos também o USB “normal” e aí que a “porca torce o rabo” como se dizia antigamente e você pode (eu não disse que vai) levar um choquinho.

Fig, 5 – Medida de tensão entre negativo da fonte e terra

Vamos ver quantos volts podem aparecer entre a parte metálica do conector USB de um recarregado Shing Lin e o TERRA. Estou falando de TERRA de verdade e não de neutro.

Será que podemos concluir que um dos pinos da tomada do recarregador está ligado diretamente à parte metálica do conector USB?

Sugiro que você meça com o ohmímetro e verá que não.

Chiii, agora complicou. De onde está vindo esta tensão “fantasma”, então?

O capacitor Y pode ser o vilão da história.

Voltando a fig.4 vemos que o capacitor Y, de 2n2F, promove o acoplamento entre os dois “terras”, o HOT e COLD.

Considerando a rede elétrica aqui no Brasil que é de 60Hz teremos uma reatância capacitiva de aproximadamente 1M2ohms interligando os dois “terras”.

Se tivermos uma alta impedância ligada entre terra COLD e o terra “de verdade” como a de um multímetro digital (11Mohms) o a chance de aparecer uma diferença de potencial maior que 50V é bem grande com foi visto na fig.5.

E aí vai dar choque?

Talvez sim, talvez não, eis a questão parafraseando Shakespeare!

Diversos fatores poderão contribuir para levarmos choque ao tocarmos na parte metálica de um conector USB que está com uma tensão AC da ordem de 50V.

O principal deles é a condição de isolamento entre o usuário e o chão (terra de verdade), isso para não falar do próprio organismo da pessoa.

Em outras palavras, pode ser que dê um choquinho, que não deverá ultrapassar 10mA e, portanto, será “apenas” desconfortável, mas é melhor evitar, porque vai que esse não o seu dia de sorte!

Podemos usar qualquer multímetro para realizar esta medida?

Vou começar a responder mostrando a fig, 6 onde foi utilizado o ICEL MD-61108.

Fig.6 Medida realizada com ICEL MD-6108

Se compararmos a leitura obtida com este multímetro com a da fig. 5 veremos que há uma diferença de cerca de 8V nos resultados, ou seja, 53,0V contra 45,4V para a mesma fonte “cobaia”.

Quem se arriscaria a dizer porque isso aconteceu?

Se está pensando em algo como um deles está com defeito ou é “ruim”, sinto muito mais errou a resposta.

Vou dar uma dica mostrando a fig. 7 e como eu sou um professor bonzinho ainda vou dar uma cola, olhe de novo a fig. 5.  

Fig. 7 – Forma de onda

                

Bingo! É isso aí, mestre. A forma de onda da fig. 7 mostra que não se trata de uma senóide “de família” e por isso o MD-6199, que mede TRUE RMS mostrou o valor correto.

Estes dois resultados mostram que não basta olhar o número que aparece no display, tem que saber interpretar.

Uma interpretação pode levar o paciente à morte tomando o remédio errado. Pense nisso, porque você não existe atestado de obtido para aparelho morto por “erro técnico”.

Todos os recarregadores ou fontes chaveadas não aterradas mostrarão o mesmo valor e tensão?

A resposta é não, porque muitos fatores irão influenciar neste “vazamento” que não é de informação e sim de tensão.

As análises feitas aqui serão úteis não apenas para concluir se um recarregador de celular pode ou não dar choque, porque no fundo tudo é fonte chaveada.

Ainda existem coisas para ser comentadas com relação a segurança de equipamentos elétricos no que diz respeito a choque elétrico, mas vou deixar para um próximo artigo.

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Paulo Brites

Técnico em eletrônica formado em 1968 pela Escola Técnica de Ciências Eletrônicas, professor de matemática formado pela UFF/CEDERJ com especialização em física. Atualmente aposentado atuando como técnico free lance em restauração de aparelhos antigos, escrevendo e-books e artigos técnicos e dando aula particular de matemática e física.

Website: http://paulobrites.com.br

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